A destruição de Montecassino
No dia 18 de maio terminava a Batalha de Cassino, uma das mais duras e irracionais da Segunda Guerra Mundial. Causou a perda de milhares de vidas humanas e a destruição da abadia de Montecassino, fundada por São Bento. “Um farol da civilização europeia” como a definiu o presidente da Itália Azeglio Ciampi, bombardeada pelos aliados “por um trágico erro, fruto de uma má interpretação”. Eis o que aconteceu
de Roberto Rotondo
Na manhã da primavera de 18 de maio de 1944, os primeiros soldados da infantaria polonesa entram extenuados entre as ruínas da abadia de Montecassino. As dizimadas tropas do general Anders são os primeiros soldados da V armada a chegarem lá em cima, abrindo caminho entre cadáveres em putrefação espalhados por toda a encosta da montanha. Uma das mais duras batalhas da Segunda Guerra Mundial. Do mais antigo mosteiro da cristandade, fundado em 529 d. C. por São Bento e onde repousam seus restos mortais, restam apenas detritos e pedaços de paredes. Foi abatido pelo mais imponente bombardeio da história contra um só edifício no dia 15 de fevereiro, ao qual se seguiram três meses de combates acirrados para expulsar os alemães que se tinham entrincheirado entre as ruínas depois do bombardeio. Mas quando os soldados aliados chegaram a Quota Mosteiro, os poucos pára-quedistas alemães, que resistiam firmemente desde fevereiro, já tinham escapado para evitar de serem cercados pelos gurkha da divisão indiana do general Francis Tuker, que atravessou os montes Aurunci rompendo a frente inimiga, cortando Cassino e abrindo aos aliados o caminho para Roma. Um plano que o próprio Tuker já queria executar em fevereiro, de acordo com o general francês Alphonse Juin, chefe das tropas norte-africanas, para evitar de atacar os alemães frontalmente em Montecassino. Mas a estratégia de ataque pelos flancos franco-indiana, que talvez tivesse poupado milhares de vidas humanas, além das muralhas e dos afrescos renascentistas da abadia, foi descartada pelos outros vértices da “multiétnica” V armada, formada por soldados de 12 nações diferentes, comandada pelo americano general Mark Clark. Este último decidira, mesmo sob pressão de subalternos influentes, como o general neozelandês Bernard Freyberg, que era preciso insistir no ataque frontal da linha Gustav (decidida pelo feldmarechal Kesselring para deter os aliados que se encaminhavam do sul para o norte) justamente no seu ponto central: a cidadezinha de Cassino e a montanha às suas costas, sobre a qual surgia o mosteiro beneditino, e do qual se podia dominar todo o Valle do Liri e o do Rapido. A abadia de Montecassino, que no pós-guerra foi reconstruída exatamente como era, este ano recordou com algumas manifestações os 60 anos do bombardeio e da trágica batalha. As celebrações do dia 15 de março passado contaram com a participação do Presidente da República italiana, Carlo Azeglio Ciampi. O Presidente foi até a abadia e participou dos três minutos de silêncio em memória das vítimas do atentado terrorista de Madri acontecido cinco dias antes, depois participou de uma missa e, na praça de Cassino, fez um discurso dedicado ao sofrimento que se abateu naquelas terras na última Guerra Mundial. Sofrimentos que no pós-guerra apenas o livro e depois o filme La Ciociara “tiveram a coragem de contar”, disse Ciampi. Acrescentando: “Há acontecimentos que representam o mal, que nenhuma filosofia da história consegue amenizar. Na Segunda Guerra Mundial, infelizmente, houve muitos. A destruição de Cassino é um destes”. Além disso, continuou Ciampi, “ninguém jamais poderá perdoar a destruição do maior farol da civilização européia, que era a Abadia de São Bento”. E por duas vezes o chefe de Estado voltou a falar do bombardeio do mosteiro beneditino: “Foi um trágico erro, fruto de uma má informação”. Depois de 60 anos exatos de distância também os Estados Unidos e a Inglaterra admitem que foi um trágico erro. Mas como e por que se chegou ao bombardeio?
Um avião B-17 americano, chamado “fortaleza voadora”, sobre a Abadia em 15 de fevereiro de 1944
O bombardeiro número 666 Reconstruamos os acontecimentos, que possui muitas analogias com as guerras e operações militares dos nossos dias, começando justamente daquele 15 de fevereiro de 1944, quando, às 9 horas e 24 minutos da manhã, a abadia de Montecassino foi abalada por uma tremenda explosão, que interrompeu a oração do pequeno grupo de monges beneditinos no cenóbio, enquanto invocavam a ajuda de Nossa Senhora e recitavam “et pro nobis Christum exora”. Entre eles estava o abade Dom Gregório Diamare, 80 anos, e o seu secretário, Dom Martino Matronola, que mais tarde publicaria um diário indispensável para reconstruir aqueles dramáticos dias. Sobre suas cabeças e a de centenas de outros refugiados que se encontravam no mosteiro abateu-se uma chuva de bombas de 250 Kg cada uma, desenganchadas do bombardeiro estratégico número 666, pilotado pelo major Bradford Evans, o qual, com um código tão intrigante, guia a primeira das quatro formações de B-17, as “fortalezas voadoras” norte-americanas, que receberam a ordem de destruir o milenar mosteiro situado no alto na montanha. Depois dos B-17 seguiram outros quatro ataques de bombardeiros médios. Às 13 horas e 33 minutos tudo acabou, os monges estavam todos salvos, mas centenas e centenas de refugiados morreram sob as ruínas provocadas pelas bombas, e será difícil, mesmo depois da guerra, exumar os corpos e dar um nome às lápides. Mudança de cenário. Washington, 16 horas do mesmo dia, na Itália já passaram das 22 horas. Já passaram cerca de 12 horas do início dos bombardeios e o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt abre uma entrevista coletiva com estas palavras: “Li nos jornais da tarde sobre o bombardeio da Abadia de Montecassino por parte de nossos aviões. Na correspondência foi explicado com muita clareza que o motivo pelo qual foi bombardeada é que os alemães usavam-na para nos bombardear. Era um ponto básico alemão, com artilharia e todo o material necessário”. O presidente norte-americano parece seguro, assim como os jornais anglo-americanos parecem certos do ato cumprido: L’Air Force atinge os nazistas em Montecassino, é a manchete do dia do New York Times. Talvez Roosevelt não sabia que seria clamorosamente desmentido pela história, mas não pode deixar de perceber que há alguma coisa estranha em toda a história. Mesmo para um mundo em guerra há muitos anos, e no qual morte e destruição são coisas do dia a dia. Com efeito, nunca antes os bombardeiros estratégicos tiveram como alvo primário um monumento, além de tudo em zona neutra, uma propriedade da Santa Sé, um mosteiro famoso em todo o mundo cristão, um lugar onde estavam conservados inestimáveis testemunhos históricos e artísticos. Também destoava o desproporção de forças: 453 toneladas de bombas descarregadas, em oito ataques, por 239 bombardeiros. Uma imensidão. Como os católicos norte-americanos reagiriam, pois poucos meses mais tarde, deveriam votar para reelegê-lo presidente dos Estados Unidos? Enfim “o bombardeio de um único objetivo mais propagandeado na história”, como o definiu o Newsweek, era a abertura dos jornais de quase todo o mundo. Quais seriam as conseqüências políticas, quem venceria a batalha da propaganda? Roosevelt mandou distribuir aos jornalistas também uma circular do comandante supremo das forças armadas aliadas na Europa, Dwight D. Eisenhower, que até então era reservada, na qual era explicado que se no decorrer do avanço das tropas se devesse escolher entre a destruição de um famoso monumento e o sacrifício dos nossos soldados, então a vida dos soldados contariam infinitamente mais”. Mas, explicava Ike, a escolha não era simples. Porque por trás da expressão “necessidade militar” não deviam se esconder nem conveniências pessoais nem relaxamento ou indiferença. Todavia, isso era muito pouco para evitar uma reação negativa da opinião pública na Europa. Uma derrota “midiática” Com efeito, a propaganda nazista estava para explodir, aproveitando da notícia do bombardeio em seu favor. Na Europa em mãos dos nazistas, os anglo-americanos seriam apresentados, nos dias seguintes ao bombardeio, como novos bárbaros que querem cancelar sistematicamente todos os vestígios da “superior civilização européia”. A Abadia de Montecassino, que no passado fora destruída três vezes, primeiro pelos bárbaros, depois pelos sarracenos e mais tarde por um terremoto, agora estava reduzida a pó “pelos judeus e pelos pró-bolcheviques em Moscou, Londres e Washington”. Mas não é tudo, porque o serviço secreto nazista – que segundo os relatórios do embaixador britânico no Vaticano, D’Arcy Osborne, há algum tempo já estava espalhando a notícia de que havia tropas nazistas na abadia, para provocar um bombardeio aliado – leva a melhor também ao eleger os alemães como defensores da civilização: com efeito, foi a divisão Hermann Göring que colocou em salvo no Vaticano, em dezembro de 1943, todas as obras de arte da Abadia transportáveis, junto com a imensa biblioteca e seus inestimáveis códices. Nessa operação de salvamento preventivo contou muito a atenção que o general Frido von Senger, comandante do XVI Panzerkorps, tinha para com os beneditinos e o histórico monumento. Senger, que era católico, ligado há muitos anos à Ordem de São Bento, pertencia àquela pequena aristocracia da Alemanha meridional contrária aos nazistas, mas obedientes às suas ordens. Senger, que comandava toda a linha Gustav, tinha também fundamentalmente respeitado a neutralidade do lugar e não permitira às suas tropas, espalhadas por toda a montanha, de alojar-se dentro da larga cintura de 300 metros que circundava as muralhas da abadia e que delimitava a zona neutra.
A refutação das “provas irrefutáveis” Roosevelt, como Winston Churchill em Londres, depois do bombardeio decidiu defender a boa intenção da decisão dos comandos aliados no Mediterrâneo. Não apenas porque a situação da avançada sobre Roma estava em uma fase muito delicada (as tropas aliadas no vale do Liri estavam bloqueadas enquanto que na zona de Anzio corriam o risco até mesmo de serem jogadas ao mar), mas também porque o general inglês Henry Maitland Wilson, comandante supremo interaliado no Mediterrâneo afirmava possuir provas incontestáveis da presença do inimigo na Abadia antes do bombardeio. Quando, dia 9 de março, o Foreign Office inglês pediria a Wilson para dar uma explicação ao Vaticano, sustentada em fatos, sobre o motivo da destruição do mosteiro, apesar das amplas garantias dadas à Santa Sé sobre o respeito pela Abadia, Wilson confirmaria que possuía doze “provas irrefutáveis” do uso militar do mosteiro por parte dos alemães, mas sugeriu também mantê-las secretas, para impedir que os alemães construíssem depois falsas contraprovas. A promessa foi de que as provas seriam dadas ao Vaticano no devido tempo. Tempo que nunca chegou, tanto que, mesmo depois da guerra, foi preciso investigações e controversos estudos históricos sobre os documentos dos arquivos militares, para concluir que se tratou de um erro. Uma das provas inconfutáveis de Wilson foi apresentada depois da guerra por um dos protagonistas, o capitão David Hunt, ajudante do marechal britânico Harold Alexander, comandante-chefe dos exércitos aliados na Itália. Hunt contou como, pouco depois do início do bombardeio, foi-lhe passada a tradução de uma mensagem interceptada dos nazistas que dizia: “Ist der Abt noch im Kloster?” e a resposta era “Ja”. Abt foi traduzido como abreviação de “divisão militar”, portanto a frase resultava assim: “A divisão está no mosteiro?” “Sim”. Também a Hunt pareceu a confirmação das suas suspeitas, o clássico “estopim” como seria chamado hoje. Mas Abt significa também abade. E, segundo Hunt, foi suficiente continuar a ler o texto da interceptação para entender que os alemães falavam dos monges do mosteiro e não das suas tropas. Todavia, disse Hunt, era tarde demais para deter os aviões que já estavam voando. É possível um erro dessa grandeza? É também preciso levar em conta que os serviços secretos, freqüentemente, vêem e ouvem o que pensam que agrade a quem lhes comanda. E assim foi também neste caso: basta pensar que, depois do início do bombardeio, o tenente Herbert Marks, da contra-espionagem aliada, que observava o mosteiro com um telescópio, mesmo com provas de que não havia alemães, afirmou ter visto uns setenta correrem do portão da abadia para o pátio circundante. E uma mensagem da V armada das 11 horas da manhã, depois do primeiro ataque dos B-17 referia: “duzentos alemães fogem do mosteiro ao longo da estrada”. Uma ordem nunca recebida Mas quem decidiu que Montecassino deveria ser destruída? No livro Montecassino, de David Hapgood e David Richardson (reeditado recentemente pela editora Baldini Castoldi Dalai, na Itália), fruto de longas pesquisas nos arquivos militares, afirma-se que não há provas para demonstrar que a decisão tenha sido tomada em um nível mais alto do general Wilson e do general Alexander. O fato é que a decisão final de bombardear a Abadia nunca foi reivindicada por nenhum escalão hierárquico, desde os líderes aliados, aos estados maiores e descendo até os comandantes de campo de batalha. Apenas um general passou à história como convicto defensor da necessidade de destruir Montecassino: Bernard Freyberg. O comandante do contingente neozelandês, que desde os primeiros dias de fevereiro tomara posição no vale do Liri com os seus homens, era muito famoso na Nova Zelândia, mas mesmo os que admiravam a sua coragem admitiam que ele receava em conceber uma estratégia mais complexa do que a de corrida de touro. Agindo assim, logo teve afinidades com o seu superior, o general Mark Clark, no plano que previa a escalada da montanha de Montecassino, embora, há muitas semanas, este plano preanunciasse somente grandes perdas. Desde os primeiros dias, Freyberg afirmava que por culpa da Abadia as linhas alemães ainda não podiam ser ultrapassadas, pois, na sua opinião, os alemães guiavam a partir dali os tiros da artilharia. Assim chegou-se ao dia 12 de fevereiro, dia em que Freyberg, por “necessidades militares” solicitou com firmeza o bombardeio do mosteiro, ameaçando até mesmo a retirada das suas tropas se não fosse contentado. Clark não era de acordo tanto por motivos políticos como militares, mas estava em situação inferior. Sobre a sua imagem gravava ainda a derrota a que fora submetida a divisão Texas de 20 de janeiro. A sua ordem de atravessar o rio Rapido tinha levado ao inútil sacrifício de quase 2 mil soldados, e a notícia da derrota correu por todo o mundo. Além disso, como escreveu Clark no seu livro de memórias In guerra con Alexander, na escala hierárquica, acima dele havia dois generais ingleses e o próprio Alexander disse-lhe a propósito do bombardeio: “Freyberg é um personagem muito importante no Commonwealth, nós o tratamos com luvas de veludo e vocês devem fazer o mesmo”. Se acrescentarmos o fato de que quase todos os jornais ingleses e americanos tinham encaminhado há muito tempo uma incessante campanha na qual se afirmava que seus soldados estavam pagando com a vida a gentileza dos comandos militares para com a Igreja Católica, e que era “melhor uma vitória no bolso do que um Michelangelo na parede” compreende-se porque Clark rendeu-se e deu carta branca para a decolagem dos bombardeiros. Não sem ter preventivamente lançado folhetos sobre o mosteiro para avisar os habitantes que as armas estavam apontadas para eles. Para os refugiados foi o aviso de condenação à morte, tanto porque ninguém quis acreditar que se chegasse a tanto, como porque não tiveram nenhuma possibilidade de fuga, pois estavam circundados, por muitos quilômetros, por dois exércitos em batalha.
O filho de Freyberg salvo pelas irmãs Por um daqueles imponderáveis paradoxos que a história da Igreja sabe doar, justamente Freyberg, que quis a todo custo destruir um dos monumentos mais significativos do cristianismo, naqueles dias teve seu filho salvo graças à hospitalidade que encontrou em um convento de irmãs de Castel Gandolfo, que esconderam este jovem tenente de infantaria depois de ter conseguido fugir dos alemães, que tinham-no capturado em Anzio. Também Castel Gandolfo era uma das propriedades da Igreja que, embora em zona neutra, foram bombardeadas naqueles meses pelo mesmo motivo utilizado para justificar a destruição da Abadia de Montecassino: “necessidade militar”. Mas talvez nem mesmo o destino do filho teria feito com que o general Bernard Freyberg mudasse de idéia, visto que não renunciou ao bombardeio nem mesmo quando um dia antes da decolagem dos aviões deu-se conta de que era inútil do ponto de vista militar, porque os seus homens, convictos das posições alemães, estavam muito longe do objetivo e não poderiam nunca ocupar as ruínas da abadia antes do inimigo. O comando da Air Force recusou-se a adiar o bombardeio, porque a partir de 16 de fevereiro os aviões deveriam operar na zona de Anzio. Então Freyberg decidiu atacar direto e as conseqüências estão nos livros de história, além dos muitos cemitérios de guerra que foram criados naquela região depois do ataque. Freyberg teve muitos mais bombardeiros do que solicitara, porque a aviação americana aproveitou a ocasião para esclarecer uma velha questão: se fosse mais eficaz o bombardeio diurno, como afirmavam eles, ou o noturno como insistiam os ingleses. Os alemães, como também o comandante neozelandês previra, ocuparam primeiro as ruínas e a batalha no vale e na montanha foi feroz. A cidade de Cassino nas semanas seguintes foi bombardeada ao ponto de os tanques de guerra americanos não poderem prosseguir na avançada devido às crateras escavadas pelas bombas de seus próprios aviões e suas artilharias. Houve um desperdício de recursos econômicos infinito. Uma colina chegou a ser rebatizada de “One-million hill”, porque foi calculado pelos artilheiros que matar cada soldado inimigo custara 25 mil dólares em projéteis. “Teria sido bem mais simples, se aquele valor”, escreveu com amargura o famoso correspondente de guerra Ernie Pyle, “tivesse sido oferecido aos alemães para irem embora”.
No dia 18 de maio terminava a Batalha de Cassino, uma das mais duras e irracionais da Segunda Guerra Mundial. Causou a perda de milhares de vidas humanas e a destruição da abadia de Montecassino, fundada por São Bento. “Um farol da civilização europeia” como a definiu o presidente da Itália Azeglio Ciampi, bombardeada pelos aliados “por um trágico erro, fruto de uma má interpretação”. Eis o que aconteceu
de Roberto Rotondo
Na manhã da primavera de 18 de maio de 1944, os primeiros soldados da infantaria polonesa entram extenuados entre as ruínas da abadia de Montecassino. As dizimadas tropas do general Anders são os primeiros soldados da V armada a chegarem lá em cima, abrindo caminho entre cadáveres em putrefação espalhados por toda a encosta da montanha. Uma das mais duras batalhas da Segunda Guerra Mundial. Do mais antigo mosteiro da cristandade, fundado em 529 d. C. por São Bento e onde repousam seus restos mortais, restam apenas detritos e pedaços de paredes. Foi abatido pelo mais imponente bombardeio da história contra um só edifício no dia 15 de fevereiro, ao qual se seguiram três meses de combates acirrados para expulsar os alemães que se tinham entrincheirado entre as ruínas depois do bombardeio. Mas quando os soldados aliados chegaram a Quota Mosteiro, os poucos pára-quedistas alemães, que resistiam firmemente desde fevereiro, já tinham escapado para evitar de serem cercados pelos gurkha da divisão indiana do general Francis Tuker, que atravessou os montes Aurunci rompendo a frente inimiga, cortando Cassino e abrindo aos aliados o caminho para Roma. Um plano que o próprio Tuker já queria executar em fevereiro, de acordo com o general francês Alphonse Juin, chefe das tropas norte-africanas, para evitar de atacar os alemães frontalmente em Montecassino. Mas a estratégia de ataque pelos flancos franco-indiana, que talvez tivesse poupado milhares de vidas humanas, além das muralhas e dos afrescos renascentistas da abadia, foi descartada pelos outros vértices da “multiétnica” V armada, formada por soldados de 12 nações diferentes, comandada pelo americano general Mark Clark. Este último decidira, mesmo sob pressão de subalternos influentes, como o general neozelandês Bernard Freyberg, que era preciso insistir no ataque frontal da linha Gustav (decidida pelo feldmarechal Kesselring para deter os aliados que se encaminhavam do sul para o norte) justamente no seu ponto central: a cidadezinha de Cassino e a montanha às suas costas, sobre a qual surgia o mosteiro beneditino, e do qual se podia dominar todo o Valle do Liri e o do Rapido. A abadia de Montecassino, que no pós-guerra foi reconstruída exatamente como era, este ano recordou com algumas manifestações os 60 anos do bombardeio e da trágica batalha. As celebrações do dia 15 de março passado contaram com a participação do Presidente da República italiana, Carlo Azeglio Ciampi. O Presidente foi até a abadia e participou dos três minutos de silêncio em memória das vítimas do atentado terrorista de Madri acontecido cinco dias antes, depois participou de uma missa e, na praça de Cassino, fez um discurso dedicado ao sofrimento que se abateu naquelas terras na última Guerra Mundial. Sofrimentos que no pós-guerra apenas o livro e depois o filme La Ciociara “tiveram a coragem de contar”, disse Ciampi. Acrescentando: “Há acontecimentos que representam o mal, que nenhuma filosofia da história consegue amenizar. Na Segunda Guerra Mundial, infelizmente, houve muitos. A destruição de Cassino é um destes”. Além disso, continuou Ciampi, “ninguém jamais poderá perdoar a destruição do maior farol da civilização européia, que era a Abadia de São Bento”. E por duas vezes o chefe de Estado voltou a falar do bombardeio do mosteiro beneditino: “Foi um trágico erro, fruto de uma má informação”. Depois de 60 anos exatos de distância também os Estados Unidos e a Inglaterra admitem que foi um trágico erro. Mas como e por que se chegou ao bombardeio?
Um avião B-17 americano, chamado “fortaleza voadora”, sobre a Abadia em 15 de fevereiro de 1944
O bombardeiro número 666 Reconstruamos os acontecimentos, que possui muitas analogias com as guerras e operações militares dos nossos dias, começando justamente daquele 15 de fevereiro de 1944, quando, às 9 horas e 24 minutos da manhã, a abadia de Montecassino foi abalada por uma tremenda explosão, que interrompeu a oração do pequeno grupo de monges beneditinos no cenóbio, enquanto invocavam a ajuda de Nossa Senhora e recitavam “et pro nobis Christum exora”. Entre eles estava o abade Dom Gregório Diamare, 80 anos, e o seu secretário, Dom Martino Matronola, que mais tarde publicaria um diário indispensável para reconstruir aqueles dramáticos dias. Sobre suas cabeças e a de centenas de outros refugiados que se encontravam no mosteiro abateu-se uma chuva de bombas de 250 Kg cada uma, desenganchadas do bombardeiro estratégico número 666, pilotado pelo major Bradford Evans, o qual, com um código tão intrigante, guia a primeira das quatro formações de B-17, as “fortalezas voadoras” norte-americanas, que receberam a ordem de destruir o milenar mosteiro situado no alto na montanha. Depois dos B-17 seguiram outros quatro ataques de bombardeiros médios. Às 13 horas e 33 minutos tudo acabou, os monges estavam todos salvos, mas centenas e centenas de refugiados morreram sob as ruínas provocadas pelas bombas, e será difícil, mesmo depois da guerra, exumar os corpos e dar um nome às lápides. Mudança de cenário. Washington, 16 horas do mesmo dia, na Itália já passaram das 22 horas. Já passaram cerca de 12 horas do início dos bombardeios e o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt abre uma entrevista coletiva com estas palavras: “Li nos jornais da tarde sobre o bombardeio da Abadia de Montecassino por parte de nossos aviões. Na correspondência foi explicado com muita clareza que o motivo pelo qual foi bombardeada é que os alemães usavam-na para nos bombardear. Era um ponto básico alemão, com artilharia e todo o material necessário”. O presidente norte-americano parece seguro, assim como os jornais anglo-americanos parecem certos do ato cumprido: L’Air Force atinge os nazistas em Montecassino, é a manchete do dia do New York Times. Talvez Roosevelt não sabia que seria clamorosamente desmentido pela história, mas não pode deixar de perceber que há alguma coisa estranha em toda a história. Mesmo para um mundo em guerra há muitos anos, e no qual morte e destruição são coisas do dia a dia. Com efeito, nunca antes os bombardeiros estratégicos tiveram como alvo primário um monumento, além de tudo em zona neutra, uma propriedade da Santa Sé, um mosteiro famoso em todo o mundo cristão, um lugar onde estavam conservados inestimáveis testemunhos históricos e artísticos. Também destoava o desproporção de forças: 453 toneladas de bombas descarregadas, em oito ataques, por 239 bombardeiros. Uma imensidão. Como os católicos norte-americanos reagiriam, pois poucos meses mais tarde, deveriam votar para reelegê-lo presidente dos Estados Unidos? Enfim “o bombardeio de um único objetivo mais propagandeado na história”, como o definiu o Newsweek, era a abertura dos jornais de quase todo o mundo. Quais seriam as conseqüências políticas, quem venceria a batalha da propaganda? Roosevelt mandou distribuir aos jornalistas também uma circular do comandante supremo das forças armadas aliadas na Europa, Dwight D. Eisenhower, que até então era reservada, na qual era explicado que se no decorrer do avanço das tropas se devesse escolher entre a destruição de um famoso monumento e o sacrifício dos nossos soldados, então a vida dos soldados contariam infinitamente mais”. Mas, explicava Ike, a escolha não era simples. Porque por trás da expressão “necessidade militar” não deviam se esconder nem conveniências pessoais nem relaxamento ou indiferença. Todavia, isso era muito pouco para evitar uma reação negativa da opinião pública na Europa. Uma derrota “midiática” Com efeito, a propaganda nazista estava para explodir, aproveitando da notícia do bombardeio em seu favor. Na Europa em mãos dos nazistas, os anglo-americanos seriam apresentados, nos dias seguintes ao bombardeio, como novos bárbaros que querem cancelar sistematicamente todos os vestígios da “superior civilização européia”. A Abadia de Montecassino, que no passado fora destruída três vezes, primeiro pelos bárbaros, depois pelos sarracenos e mais tarde por um terremoto, agora estava reduzida a pó “pelos judeus e pelos pró-bolcheviques em Moscou, Londres e Washington”. Mas não é tudo, porque o serviço secreto nazista – que segundo os relatórios do embaixador britânico no Vaticano, D’Arcy Osborne, há algum tempo já estava espalhando a notícia de que havia tropas nazistas na abadia, para provocar um bombardeio aliado – leva a melhor também ao eleger os alemães como defensores da civilização: com efeito, foi a divisão Hermann Göring que colocou em salvo no Vaticano, em dezembro de 1943, todas as obras de arte da Abadia transportáveis, junto com a imensa biblioteca e seus inestimáveis códices. Nessa operação de salvamento preventivo contou muito a atenção que o general Frido von Senger, comandante do XVI Panzerkorps, tinha para com os beneditinos e o histórico monumento. Senger, que era católico, ligado há muitos anos à Ordem de São Bento, pertencia àquela pequena aristocracia da Alemanha meridional contrária aos nazistas, mas obedientes às suas ordens. Senger, que comandava toda a linha Gustav, tinha também fundamentalmente respeitado a neutralidade do lugar e não permitira às suas tropas, espalhadas por toda a montanha, de alojar-se dentro da larga cintura de 300 metros que circundava as muralhas da abadia e que delimitava a zona neutra.
A refutação das “provas irrefutáveis” Roosevelt, como Winston Churchill em Londres, depois do bombardeio decidiu defender a boa intenção da decisão dos comandos aliados no Mediterrâneo. Não apenas porque a situação da avançada sobre Roma estava em uma fase muito delicada (as tropas aliadas no vale do Liri estavam bloqueadas enquanto que na zona de Anzio corriam o risco até mesmo de serem jogadas ao mar), mas também porque o general inglês Henry Maitland Wilson, comandante supremo interaliado no Mediterrâneo afirmava possuir provas incontestáveis da presença do inimigo na Abadia antes do bombardeio. Quando, dia 9 de março, o Foreign Office inglês pediria a Wilson para dar uma explicação ao Vaticano, sustentada em fatos, sobre o motivo da destruição do mosteiro, apesar das amplas garantias dadas à Santa Sé sobre o respeito pela Abadia, Wilson confirmaria que possuía doze “provas irrefutáveis” do uso militar do mosteiro por parte dos alemães, mas sugeriu também mantê-las secretas, para impedir que os alemães construíssem depois falsas contraprovas. A promessa foi de que as provas seriam dadas ao Vaticano no devido tempo. Tempo que nunca chegou, tanto que, mesmo depois da guerra, foi preciso investigações e controversos estudos históricos sobre os documentos dos arquivos militares, para concluir que se tratou de um erro. Uma das provas inconfutáveis de Wilson foi apresentada depois da guerra por um dos protagonistas, o capitão David Hunt, ajudante do marechal britânico Harold Alexander, comandante-chefe dos exércitos aliados na Itália. Hunt contou como, pouco depois do início do bombardeio, foi-lhe passada a tradução de uma mensagem interceptada dos nazistas que dizia: “Ist der Abt noch im Kloster?” e a resposta era “Ja”. Abt foi traduzido como abreviação de “divisão militar”, portanto a frase resultava assim: “A divisão está no mosteiro?” “Sim”. Também a Hunt pareceu a confirmação das suas suspeitas, o clássico “estopim” como seria chamado hoje. Mas Abt significa também abade. E, segundo Hunt, foi suficiente continuar a ler o texto da interceptação para entender que os alemães falavam dos monges do mosteiro e não das suas tropas. Todavia, disse Hunt, era tarde demais para deter os aviões que já estavam voando. É possível um erro dessa grandeza? É também preciso levar em conta que os serviços secretos, freqüentemente, vêem e ouvem o que pensam que agrade a quem lhes comanda. E assim foi também neste caso: basta pensar que, depois do início do bombardeio, o tenente Herbert Marks, da contra-espionagem aliada, que observava o mosteiro com um telescópio, mesmo com provas de que não havia alemães, afirmou ter visto uns setenta correrem do portão da abadia para o pátio circundante. E uma mensagem da V armada das 11 horas da manhã, depois do primeiro ataque dos B-17 referia: “duzentos alemães fogem do mosteiro ao longo da estrada”. Uma ordem nunca recebida Mas quem decidiu que Montecassino deveria ser destruída? No livro Montecassino, de David Hapgood e David Richardson (reeditado recentemente pela editora Baldini Castoldi Dalai, na Itália), fruto de longas pesquisas nos arquivos militares, afirma-se que não há provas para demonstrar que a decisão tenha sido tomada em um nível mais alto do general Wilson e do general Alexander. O fato é que a decisão final de bombardear a Abadia nunca foi reivindicada por nenhum escalão hierárquico, desde os líderes aliados, aos estados maiores e descendo até os comandantes de campo de batalha. Apenas um general passou à história como convicto defensor da necessidade de destruir Montecassino: Bernard Freyberg. O comandante do contingente neozelandês, que desde os primeiros dias de fevereiro tomara posição no vale do Liri com os seus homens, era muito famoso na Nova Zelândia, mas mesmo os que admiravam a sua coragem admitiam que ele receava em conceber uma estratégia mais complexa do que a de corrida de touro. Agindo assim, logo teve afinidades com o seu superior, o general Mark Clark, no plano que previa a escalada da montanha de Montecassino, embora, há muitas semanas, este plano preanunciasse somente grandes perdas. Desde os primeiros dias, Freyberg afirmava que por culpa da Abadia as linhas alemães ainda não podiam ser ultrapassadas, pois, na sua opinião, os alemães guiavam a partir dali os tiros da artilharia. Assim chegou-se ao dia 12 de fevereiro, dia em que Freyberg, por “necessidades militares” solicitou com firmeza o bombardeio do mosteiro, ameaçando até mesmo a retirada das suas tropas se não fosse contentado. Clark não era de acordo tanto por motivos políticos como militares, mas estava em situação inferior. Sobre a sua imagem gravava ainda a derrota a que fora submetida a divisão Texas de 20 de janeiro. A sua ordem de atravessar o rio Rapido tinha levado ao inútil sacrifício de quase 2 mil soldados, e a notícia da derrota correu por todo o mundo. Além disso, como escreveu Clark no seu livro de memórias In guerra con Alexander, na escala hierárquica, acima dele havia dois generais ingleses e o próprio Alexander disse-lhe a propósito do bombardeio: “Freyberg é um personagem muito importante no Commonwealth, nós o tratamos com luvas de veludo e vocês devem fazer o mesmo”. Se acrescentarmos o fato de que quase todos os jornais ingleses e americanos tinham encaminhado há muito tempo uma incessante campanha na qual se afirmava que seus soldados estavam pagando com a vida a gentileza dos comandos militares para com a Igreja Católica, e que era “melhor uma vitória no bolso do que um Michelangelo na parede” compreende-se porque Clark rendeu-se e deu carta branca para a decolagem dos bombardeiros. Não sem ter preventivamente lançado folhetos sobre o mosteiro para avisar os habitantes que as armas estavam apontadas para eles. Para os refugiados foi o aviso de condenação à morte, tanto porque ninguém quis acreditar que se chegasse a tanto, como porque não tiveram nenhuma possibilidade de fuga, pois estavam circundados, por muitos quilômetros, por dois exércitos em batalha.
O filho de Freyberg salvo pelas irmãs Por um daqueles imponderáveis paradoxos que a história da Igreja sabe doar, justamente Freyberg, que quis a todo custo destruir um dos monumentos mais significativos do cristianismo, naqueles dias teve seu filho salvo graças à hospitalidade que encontrou em um convento de irmãs de Castel Gandolfo, que esconderam este jovem tenente de infantaria depois de ter conseguido fugir dos alemães, que tinham-no capturado em Anzio. Também Castel Gandolfo era uma das propriedades da Igreja que, embora em zona neutra, foram bombardeadas naqueles meses pelo mesmo motivo utilizado para justificar a destruição da Abadia de Montecassino: “necessidade militar”. Mas talvez nem mesmo o destino do filho teria feito com que o general Bernard Freyberg mudasse de idéia, visto que não renunciou ao bombardeio nem mesmo quando um dia antes da decolagem dos aviões deu-se conta de que era inútil do ponto de vista militar, porque os seus homens, convictos das posições alemães, estavam muito longe do objetivo e não poderiam nunca ocupar as ruínas da abadia antes do inimigo. O comando da Air Force recusou-se a adiar o bombardeio, porque a partir de 16 de fevereiro os aviões deveriam operar na zona de Anzio. Então Freyberg decidiu atacar direto e as conseqüências estão nos livros de história, além dos muitos cemitérios de guerra que foram criados naquela região depois do ataque. Freyberg teve muitos mais bombardeiros do que solicitara, porque a aviação americana aproveitou a ocasião para esclarecer uma velha questão: se fosse mais eficaz o bombardeio diurno, como afirmavam eles, ou o noturno como insistiam os ingleses. Os alemães, como também o comandante neozelandês previra, ocuparam primeiro as ruínas e a batalha no vale e na montanha foi feroz. A cidade de Cassino nas semanas seguintes foi bombardeada ao ponto de os tanques de guerra americanos não poderem prosseguir na avançada devido às crateras escavadas pelas bombas de seus próprios aviões e suas artilharias. Houve um desperdício de recursos econômicos infinito. Uma colina chegou a ser rebatizada de “One-million hill”, porque foi calculado pelos artilheiros que matar cada soldado inimigo custara 25 mil dólares em projéteis. “Teria sido bem mais simples, se aquele valor”, escreveu com amargura o famoso correspondente de guerra Ernie Pyle, “tivesse sido oferecido aos alemães para irem embora”.
O Presidente italiano, Carlo Azeglio Ciampi, e sua esposa, Franca, visitando a Abadia de Montecassino acompanhados pelo abade Dom Bernardo D’Onorio, dia 15 de março de 2004
(FONTE: 30giorni.it)
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